mercoledì 17 dicembre 2014

Da evolução da arte: o caso do "Signor Bonaventura"

Como deve ser escrita e estudada a história dos quadrinhos? O cinema e a literatura devem tomar parte, especialmente com o crescente contato entre estas artes? Ou corremos o risco de tornar as HQs uma arte subserviente às demais, incapaz de desenvolver seus próprios métodos e referências? Na historiografia de literatura, é um problema há muito reconhecido a tentativa de isolar o fato literário dos demais fatos, mesmo quando, a partir das lições do século XIX, geralmente se entende o produto artístico como consequência do meio: frequentemente busca-se escrever uma história na qual figure apenas aquilo que é considerado literatura (um conjunto de fatos artísticos muito mais fluido de quanto se costuma imaginar), relegando obras claramente relacionadas a diferentes expressões de um mesmo contexto de origem. É um problema daquela prática de se considerar uma obra como fruto do meio onde é produzida ou do autor que a produz, que para o âmbito dos quadrinhos pode perfeitamente acabar por resumi-los a "literatura para quem não é capaz de ler". Esta angústia pela forma de estudo, para superar as histórias da literatura que simplesmente encadeiam em ordem cronológica autores e obras, geralmente oferecendo uma pequena biografia dos primeiros que prepara a rápida resenha das segundas, foi e é uma discussão recorrente dos estudos literários desde as primeiras histórias da literatura no século XIX, quando essência do conceito de "literatura" se torna aquela que possuímos ainda hoje, especialmente em duas vertentes separadas no tempo e no espaço: os chamados "formalistas", da Rússia do Entre-Guerras, e a "estética da recepção", da Alemanha Ocidental dos anos '60 e '70.

Yuri Tynianov (1894-1943)
Um importantíssimo nome do primeiro grupo foi Yuri Tynianov (também grafado "Tinianov") que, ao investigar a história da literatura, se viu obrigado a compreender o conceito de "evolução" literária. Num curto mas brilhante ensaio sobre o tema, Tynianov discutia como a literatura precise ser estudada como "sistema" que considere funcionalmente todas suas componentes (consideradas literárias ou menos), e como a expressão "história da literatura" se refira a duas diferentes investigações, que requerem duas diferentes metodologias: por um lado o estudo da gênese dos fatos literários (em nosso caso, como surgiram os quadrinhos) e, por outro, o estudo da variabilidade dentro da "série" da literatura. Como na descrição de Branco (2014), que incorpora citações de Tynianov:
A noção fundamental da evolução literária corresponde à substituição de sistemas, sustenta Tinianov, para em seguida afirmar que «a obra literária constitui um sistema» e a literatura outro. É possível isolar o assunto, o estilo, o ritmo e a sintaxe na prosa e o ritmo e a semântica na poesia, mas estes elementos estão em interacção e cada um desempenha diferentes papéis em distintos sistemas. A função construtiva de um elemento da obra literária como sistema corresponde à sua possibilidade de se correlacionar com os outros elementos do sistema: "O elemento entra simultaneamente em relação com a série dos elementos semelhantes que pertencem a outras obras-sistemas, isto é, a outras séries, e, por outro lado, com os outros elementos do mesmo sistema (função autônoma e função sínoma). Assim, o léxico de uma obra entra simultaneamente em correlação, por um lado, com o léxico literário e com o léxico tomado no seu conjunto; por outro lado, com os outros elementos desta obra. Estas duas componentes, ou antes estas duas funções resultantes, não são equivalentes".
Uma consequência é impossibilidade de se estudar qualquer arte isoladamente, pois o material (os sistemas) de uma necessariamente migram e são reaproveitados. Cabe lembrar um exemplo concreto, dado por Tynianov em seu estudo sobre a paródia em Dostoiévski e Gogol: nos séculos XVII e XVIII a literatura russa se tornou um exercício extremamente abstrato e rebuscado, muito distante da "vida comum", baseado na composição de líricas de estruturas, sintaxes e vocabulários quase incompreensíveis. Quando o público se saturou destas poesias e se mostrou interessado em narrativas, não havia nenhum modelo literário próximo no qual se espelhar; uma das soluções foi se apropriar das técnicas narrativas encontradas nas cartas, que, muito longe de serem consideradas "arte literária", nunca haviam deixado de ser escritas e quase invariavelmente continham relatos. Em pouco tempo, o estilo das cartas foi copiado, imitado, destilado, e alguns romances, seguindo outros exemplos europeus, foram compostos usando quase unicamente cartas.

As impostações dos questionamentos do século XX na historiografia literária certamente poderão ser empregados para o estudo dos quadrinhos; é, no fundo, um dos motivadores deste blog.

Em termos de contato entre sistemas, há um caso particular, de quadrinhos parte de minha infância e que lia semanalmente nas páginas do italiano Corriere dei Piccoli. Pensando com mais de vinte anos de distância, talvez fosse justamente seu traço art-nouveau e seus versos que me causavam o "estranhamento" -- aquilo que Viktor Chklovski, outro dos principais nomes do formalismo russo, chamou em seu artigo "A arte como processo" de остранение, para definir o efeito criado pela obra de nos distanciar da ordem com a qual aprendemos e percebemos o mundo e a própria arte, que nos permite "estranhar". É aquela singularidade, que pode ser alcançada por vários meios, que faz da arte "boa".

Um momento... art-nouveau e poesia? Em quadrinhos? Sim, eis o estranhamento.

Il Signor Bonaventura
O Signor Bonaventura é uma personagem de histórias em quadrinhos italiana, criado em 1917 por Sergio Tofano (1886-1973), em arte "Sto", um verdadeiro polímata das artes italianas: ator, diretor, roteirista, desenhista, caricaturista e escritor. É um personagem do traço simples e rápido (parte do sucesso entre as crianças italianas era certamente devido à facilidade de reproduzi-lo), sempre vestido com uma espécie de fraque vermelho e largas pantalonas brancas, acompanhado por um cachorro dachshund chamado, simplesmente, de "bassotto" (o nome da raça em italiano). Publicado no Corriere dei Piccoli ("Correio dos pequenos", a revista infantojuvenil de maior sucesso do país, nascida como suplemento dominical do jornal Corriere della Sera e publicada entre 1908 e 1995) foi um sucesso imediato e continuou a ser publicado sem interrupções por vinte e seis anos, até 1943. Foi retomado por Sto entre os anos '50 e '60, e a partir de meados dos anos '80 foi passado pelo autor às mãos de Carlo Peroni (em arte "Perogatt"), outro grande nome dos fumetti, falecido em 2011. Com republicações e algumas tiras especiais, especialmente publicitárias, a série durou até o início dos anos 2000, com uma grande coletânea publicada em 2010.

Os dois grandes diferenciais do Signor Bonaventura são a sua forma sem balões e com "didascalias" em versos rimados (que permitem mesmo questionar o tratar-se de "quadrinhos") e a intersecção com outras artes, em especial com o teatro. Vejamos cada uma.

As histórias dos Signor Bonaventura seguiram, durante seus mais de setenta anos, uma forma extremamente regular: seis ou oito quadros com o estilo de traço já descrito, sem balões, cada quadro com uma descrição ("didascalias", como no teatro) constituída por dois dísticos de ottonari (verso da poesia italiana equivalente, grosso modo, ao raro eneassílabo da poesia portuguesa), com rima ABAB ou ABBA, geralmente iniciando por "Qui comincia la sciagura / del Signor Bonaventura" [Aqui começa a desventura / do Senhor Bonaventura]. Apesar das rimas simples, a linguagem era frequentemente áulica e alta, em contraste com o traço simplíssimo já lembrado. O roteiro igualmente seguia um esquema bastante determinado: de alguma "desventura" do protagonista logo resultava, sem que o pretendesse, a salvação de alguma personagem que, no último quadro, o recompensava com "un milione" (um milhão de liras, quantia astronômica nos primeiros anos da série quando o "suplemento ilustrado" custava dez centavos, transformada em "un miliado", ou um bilhão, após a inflação dos anos '40). À personagem principal de Bonaventura e seu companheiro de quatro patas se juntam algumas decididamente secundárias mas recorrentes, como a esposa (uma anônima princesa, introduzida já em 1917), o filho Pizzirì (basicamente um Bonaventura em miniatura), o comissário Sperassai ("muito espera"), o principal "supervilão", o esverdeado Barbariccia, e a mais recorrente entre as personagens eventualmente salvas por Bonaventura, o "bellissimo Cecè" (diminutivo de Cesare), perfeito representante do mundo do herói povoado por ricos (e generosos) reis, condes, barões, empresários. É um personagem inspirado na peça homônima de Luigi Pirandello de 1913, Cecè, onde com humor cínico se narra a história do bon viveur Cesare, o qual, frente ao cenário de corrupção e escândalos políticos da Roma do entre-guerras, se mantém na vida enganando as pessoas.

Signor Bonaventura, Corriere dei Piccoli, 19 de julho de 1959
Vejamos este exemplo, já do segundo ciclo de publicações, ainda sob a pena de Sto e com um pouco mais de liberdade nos versos (sobretudo na minha tradução, para tentar manter as rimas):

1. Il signor Bonaventura
Ottimista per natura

il figliolo in piazza reca
per giocare a moscacieca.

2. Contemplateli contenti
l'uno e l'altro al gioco intenti:

a tentoni il buon papà
Pizzirì cercando va.

3. Ma l'eterno suo rivale
Barbariccia, il criminale

che gli fa la vita amara,
un tranello gli prepara.

4. Inciampando nel cordino
capitombola il meschino

e va a sbattere diritto
contro un uscio a capofitto.

5. S'apre l'uscio e proeittato
come un missile lanciato

con la zucca - guarda caso!
centra in pieno antico vaso.

6. Cade il vaso con fragore
e da quello il possessore

sbucar vede sbalordito
vecchio rotolo ingiallito.

7. Certo c'è in quel documento
lo scomparso testamento

fin ad or cercato invano
dall'amato zio Gaetano.

8. E poichè da qui si vede
ch'è lui solo, lui l'erede

suo dovere è compensare
chi lo fece ritrovare.
1. O Senhor Bonaventura
Otimista por natura

o filhinho à praça leva
para brincar de cabra-cega.

2. Contemplem-nos contentes
o um e o outro ao jogo participantes:

tateando o bom papai
Pizzirì buscando vai.

3. Mas o eterno seu rival
Barbariccia, o criminal

que lhe torna a vida amarga,
uma armadilha lhe prepara.

4. Tropeçando no fiozinho
cambalhota o magrinho

e vai a bater direto
contra um umbral de cabeça.

Abre-se a porta e projetado
como um míssil atirado

com a cabeça - quem diria!
acerta em cheio antigo vaso.

6. Cai o vaso com fragor
e de ele o possuidor

surgir vê espantado
velho pergaminho amarelado.

7. Claro que está no documento
o sumido testamento

até então buscado em vão
pelo amado tio Gastão.

8. E já que dele se aprende
qu'é ele somente, ele o herdeiro

seu dever é compensar
quem lhe fez encontrar.

Os versos, apesar do ritmo e do metro quase infantil, tem os traços de toda a tradição poética ocidental: enjambement (a distribuição de uma mesma frase em mais versos), assonâncias, supressão de palavras, epênteses (adição de vogais incomuns ou desnecessárias para fechar o metro), palavras rebuscadas e raras. O uso de versos, em si, não era absolutamente inovador nos primeiros quadrinhos italianos: o primeiro Corriere dei Piccoli, de 1908, já utilizava este formato (em baixa resolução, infelizmente) e o mesmo ocorre na outra capa, de 1911, a história dos não melhor identificados "Moritz Hans e Franz" (similar à famosa The Katzenjammer Kids, mas mais adequada à boa moral dos filhos da burguesia de Milão -- é uma curiosidade válida de citar que o projeto estava a cargo de Paola Lombroso Carrara, filha do conhecido e "debatido" médico criminalista Cesare Lombroso) também contada em versos:

Corriere dei Piccoli, 1908 (primeira capa)


Moritz Hans e Franz, Corriere dei Piccoli, 9 de julho de 1911
Na tradução (sempre minha e com as mesmas ressalvas):

1.- "Starò fuori un mese, e porto
via la chiave del mio orto, -

dice Franz - ma è caldo assai
e purtroppo i miei rosai,

2. che nessun più avrà innaffiati,
troverò certo seccati..."

Il rimedio al triste caso
già sa Moritz che ha buon naso.

3. Una secchia e una lunga asta,
ecco ciò che al caso basta:

farà il resto il buon mulino -
pensa il furbo olandesino.

4. Secchia ed asta ecco legata
alla pala smisurata,

e versata ecco parecchia
acqua fresca entro la secchia.

5. Già si mette pian col vento
la gran pala in movimento.

Sembra dire: "- Franz, vedrai,
ci son io pei tuoi rosai".

6. Dice or Moritz, mentre gronda
sui rosai l'acqua e li inonda:

"- Caro Franz non seccheranno
s'anche state fuori un anno".
2. -"Estarei longe mais de mês, e levo
embora a chave da minha orta, -

diz Franz - mas está quente assaz
e infelizmente meu roseiral,

2. que ninguém mais terá regado,
encontrarei certamente secado..."

O remédio ao triste caso
já sabe Moritz que tem bom faro.

3. Um balde e uma longa haste,
e tanto que ao caso baste:

fará o resto o bom moinho -
pensa o esperto holandesinho.

4. Balde e haste eis ligadas
à pá exagerada,

e versada eis bastante
água fresca dentro ao balde.

5. Já se começa aos pouco com o vento
a grande pá seu movimento.

Parece dizer: "- Franz, verás,
tens a mim para os roseirais".

6. Diz agora Moritz, enquanto goteja
sobre as rosas a água e as inunda:

"- Caro Franz não secarão
nem que fiques longe um ano".


O estranhamento dos versos nos quadrinhos do Signor Bonaventura é devido apenas à pouca familiaridade que temos com eles; na verdade, quando foi lançado, em 1917, a nova tira se enquadrava perfeitamente, sem inovações, no estilo da revista.

Combinado ao sucesso publicitário (foi usado desde a promoção para o financiamento da reconstrução do país após a guerra até a introdução do euro na virada do milênio), essas características já seriam suficientes para fazer o senhor Bonaventura merecedor de uma nota (ou ao menos de um post). Mas, como já dito, há outro detalhe praticamente único na história desta personagem de quadrinhos: o desenvolvimento interligado ao teatro italiano, especialmente à tradição da Commedia dell'Arte. Sto era um pluriartista e um amado ator de teatro, cinema e televisão, e até o final dos anos cinquenta uma das personagens mais encenadas pelo ator era justamente o Signor Bonaventura.

Barbariccia e Signor Bonaventura (fonte)

A descrição da personagem, as fotografias das encenações, a estrutura das tramas e uso da poesia, combinadas à tradição italiana da Commedia dell'Arte ainda bastante viva na primeira metade do século passado (para dar um único exemplo, baste pensar que Totò, o mais querido personagem do cinema italiano, é uma evolução sui generis das máscaras napoletanas da Commedia) deveriam fazer imediatamente saltar aos olhos a gênese do Signor Bonaventura: apesar dos recursos gráficos e narrativos dos quadrinhos que na época eram importados dos Estados Unidos, se trata de uma evolução da tradição da Commedia dell'Arte.

A commedia dell'arte, cabe lembrar, é, mais um que gênero, uma modalidade de produção dos espetáculos teatrais popularizada na Itália, e sucessivamente na França, entre os séculos XVI e XVIII. As peças não eram baseadas em roteiros escritos, mas em canovacci, uma espécie de descrição genérica e superficial das peças, que não entrava nas minúcias da representação. Os canovacci eram, na prática, as deixas que permitiam a improvisação por parte dos atores, que durante as peças entremeavam lazzi (ações cômicas bem ensaiadas e distintivas das personagens) e diálogos, tudo com uma cenografia mínima. Primeira efetiva profissionalização da atividade teatral, a Commedia dell'Arte tinha peças estruturadas na caracterização bastante definida de muitas personagens ("máscaras"), algumas das quais, apesar das esperadas alterações devidas ao tempo, ainda são conhecidas: entre dezenas de outroas, Arlecchino, Colombina, Pierrot, Pulcinella, Pantaleão.

Representação de uma trupe da CA (final do séc. XVI), anônimo, Musée Carnavalet

Sto tinha plena consciência da tradição que representava, e sentia enorme prazer em certas descrições do Signor Bonaventura como "ultima máscara da Commedia", apesar de deixar vir à tona, na aparente infantilidade da obra, uma enorme bagagem de outras referências, de Metastasio aos futuristas na literatura, do liberty (o "art nouveau" na interpretação italiana) ao cubismo no traço.

É hora de voltar à questão da história dos quadrinhos. A mais evidente distinção entre o Signor Bonaventura e os quadrinhos em geral é certamente a forma da "didascalia", aprendida dos "proto-quadrinhos" americanos da segunda metade do século XIX (que por sua vez reinstauravam uma prática da qual se encontram testemunhos já no Renascimento e que havia sido introduzida por aquele hoje considerado o precursor dos quadrinhos, o suíço Rodolphe Töpffer), como Ally Sloper de Charles Ross. Se havia alguma diferença na forma -- especialmente considerando o ambiente italiano, no qual a palavra para quadrinhos é "fumetti" ("balõezinhoes") -- nunca ouve, contudo, diferença no consumo, e tanto público quanto suporte físico inscrevem claramente a obra de Sto no âmbito dos quadrinhos. Além disso, é interessante como as novas experiências, devidas à popularização da graphic novel (que requer novas soluções) e a pluralidade dos quadrinhos indie ou alternativos (ao menos desde Harvey Kurtzman e Robert Crumb), acabam por vezes levando, hoje, a soluções mais próximas àquelas de Bonaventura, apesar do estranhamento dos versos ter pouquíssimos, quando algum, paralelos.

Alexander "Ally" Sloper, por Charles H. Ross (1867)


É um caso peculiar da influência entre as séries artísticas, de apropriação e adaptação. Contudo, apesar do sucesso de público e de uma certa influência na cultura italiana, Signor Bonaventura parece literalmente uma obra única, incapaz de influência ativa na continuidade do gênero: apesar de alguns traços distintivos, às vezes exagerados pelo sentimento nacional que permanece bastante forte, os quadrinhos italianos seguiram linhas de desenvolvimento paralelas àquelas americanas, podendo ser bem representado pela Disney italiana (cabe lembrar que uma parte considerável dos quadrinhos da Disney, inclusive daquele publicados no Brasil, é produzida na Europa, especialmente na Itália e na Dinamarca) e pelo Tex de Gian Luigi Bonelli. A vantagem da postura de evolução artística sugerida por Tynianov é que talvez um dia as lições do Signor Bonaventura possam ser recuperadas, mesmo que em um nicho, ao se buscar algumas soluções que uma leitura auto-referencial dos quadrinhos não seja mais capaz de satisfazer. É, de certo modo, a leitura que podemos fazer também das graphic novels dos anos '80: sua inovação estava justamente em buscar, muito mais que novos desenhistas que se mostravam cada vez mais hábeis, novos roteiristas capazes de quebrar a autoreferencialidade dos quadrinhos de super-heróis colocando o dedo na ferida dos super-poderes com interpretações bastante inovadoras e que buscava soluções em outras artes: é o caso de Sandman e Watchmen.

Referência

BRANCO, Isabel R. A. A recepção das literaturas hispano - americanas na literatura portuguesa contemporânea: edição, tradução e criação literária. (tese de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014. (fonte)

A gênese do super-herói

Há vários pontos focais na história dos quadrinhos, como os precedentes do século XIX (por exemplo os "proto-quadrinhos" de Rodolphe Töpffer, esquecido pela memória cultural até sua redescoberta por Ernst Gombrich em seu Arte e Ilusão de 1960), os meados dos anos '50 e o Comics Code Authority ou a fase, a partir do final dos anos '80, de estabelecimento das graphic novels em títulos como Sandman e Watchmen. É contudo aos anos '30 que devemos a afirmação material do gênero, com a popularização dos comic books graças ao barateamento da impressão a cores, durante os quais se fixa um formato essencialmente inalterado.

Junto ao meio, a mesma década também estabelece o protagonista por antonomásia dos quadrinhos, o super-herói. A origem desta figura hoje arquetípica é particularmente debatida, inclusive pelas leituras psicológicas (como já praticado no Seduction of the Innocent de Fredric Wertham) e pelas frequentes críticas que percorrem o fácil caminho de assimilação com as filosofias da virada do século, motivadas pelo indiscutível paralelo entre o Superman de Siegel e Shuster e o Übermensch de Nietzsche, paralelo que merece uma análise muito mais pausada. Justamente o Superman costuma ser apontado como o primeiro super-herói, inspiração para os demais. Apesar de ser posterior a outros vigilantes dos quadrinhos que logo veremos, considerando-se sua fama trata-se de uma boa escolha em termos cronológicos, pois o herói de Krypton, de 1938, é anterior a praticamente todos os personagens ainda ativos (entre os mais antigos, Batman é de 1939, Wonder Woman, Aquamen e Captain America são de 1941). Postura por vezes criticada, apontando-se em outras artes os verdadeiros primeiros super-heróis, dos quais o protagonista de Siegel Shuster seria apenas uma expressão juvenil de influência modernista; uma concretização, na história desta arte, daquela interpretação dos quadrinhos como prolongamento da cultura de massa, na qual ainda se subentende uma certa inferioridade estética, dos mitos da alta cultura, daquela noção da história da arte alemã do gesunkenes Kulturgut ("cultura afundada") que Mikhail Bakhtin discute ao tratar das apropriações culturais em Rabelais (cfe. Bakhtin, passim).

É assim, por exemplo, que a força descomunal do Superman é explicada por antecedentes literários como o Sansão bíblico ou o Hércules clássico. Uma leitura aceitável, pois além das influências narrativas é preciso lembrar como, ainda hoje, os desenhistas de quadrinhos se inspiram no vocabulário gráficos clássicos e principalmente neoclássicos ao buscar soluções para seus argumentos exigentes em músculos e movimentos de batalha, algo particularmente válidos naquele período de baixíssimo reconhecimento dos quadrinhos como estética, quando os autores eram autodidatas ou egressos de pouco sucesso de escolas de Belas Artes, em ambos os casos tendo como referencial concreto, num período segmentado entre os vários vanguardismos e o academicismo, precisamente os quadros antigos. Não é casualidade que a hoje antológica capa do primeiro Action Comics, no qual debuta o Superman, releia muitas soluções de quadros do Renascimento e adote várias técnicas antigas nas proporções e da disposição do corpo da figura central, da qual pode-se contemplar o corpo inteiro, sem sobreposições.

Capa do Action Comics #1, Joe Shuster (1938), 10-1/2x7-3/4 in. (26,7x19,7 cm)

Ercole e l'idra, Antonio del Pollaiolo (1475), 17x12 cm.

Interessante questão de influências entre artes para a história da cultura, mas que pouco resolve aquela mais circunscrita da efetiva gênese dos super-heróis de quadrinhos, de sua evolução. Resolve-la pela identificação de referenciais clássicos acaba, como no caso das histórias da literatura mais tradicionais, projetando a situação do presente na organização do passado, neste caso específico atribuindo à personagem de Siegel e Shuster inovações, como força sobre-humana ou luta contra o mal, e uma importância, como preferência de público (especialmente para aquele pouco habituado com os efetivos comic books), questionáveis.

Capa de edição brasileira, sem data. Fonte: Super-heróis em geral
A luta do bem contra o mal, talvez o fator que acomune os heróis dos quadrinhos e da literatura (com superpoderes ou menos), já havia figurado, entre outros hoje esquecidos, em Scarlet Pimpernel de Emma Orczy (1905), obra e peça de grande sucesso e precursora direta de Zorro de Johnston McCulley (1919), Buck Rogers de Philip Francis Nowlan (1928) e The Shadow de Walter B. Gibson (1930). Todos protagonistas, em originais e especialmente derivações, de pulp fictions, talvez o gênero literário imediatamente anterior aos quadrinhos não apenas por frequentemente competirem pelo mesmo público, mas também por serem organizados segundo uma produção de massa (inclusive nas controversas workshops) que alguém poderia ficar tentado em dizer "anterior a seu tempo". É das pulp fictions, especialmente em seu gosto por personagens mascarados, que nascem os primeiros heróis dos quadrinhos, como Mandrake e The Phantom (respectivamente 1934 e 1936, ambos frutos da imaginação de Lee Falk) e The Clock (criado por George Brenner em 1936) -- como reconhecimento a esta dívida, baste lembrar que a DC há muito estabeleceu que o filme que Bruce Wayne e seus pais assistiram pouco antes do assassinato destes últimos era, precisamente, uma película do Zorro.

O próprio traço da força descomunal já havia sido explorado e desenvolvido nos quadrinhos em uma personagem de pouquíssimo sucesso, mera nota cronológica: Hugo Hercules, tira desenhada por William H.D. Koerner para o Chicaco Tribune entre setembro de 1902 e janeiro de 1903, no qual a personagem homônima, um senhor de trajes vitorianos, ajuda seus concidadãos com sua força hercúlea; pensando nas influências de outras artes, não se pode esquecer o sucesso da série de filmes italianos de Gabriele D'Annunzio sobre Maciste (27 filmes na série original entre 1914 e 1927), explicitamente inspirado em Hércules.


Cabiria (1914), Bartolomeo Pagano como Maciste
 
Mas a inovação do Superman é indiscutível para o gênero, comparável ao Lazarillo de Tormes para o romance picaresco. Como aponta Nyberg (1998, p.16, apud GARCÍA):
Tão novo, na verdade, que o termo super-herói só foi cunhado vários anos depois do surgimento do Superman, o primeiro dos super-heróis dos quadrinhos. Os personagens super-heroicos distinguiram os comic books de outros meios e contribuíram para o crescimento do comic book, de curiosidade das bancas a um meio de massa. Em retrospectiva, é facil ver o impacto que esses super-heróis tiveram sobre a cultura popular americana, já que o super-heroi é atualizado e reiventado para cada nova geração.
Efetivamente, apesar do primeiro uso do termo "superhero" em inglês datar de 1908 (em uma tradução de Nietzsche), seu primeiro emprego em comic books se dá em um Tarzan de 1930, popularizando-se, primeiro em inglês e imediatamente nas demais línguas, somente a partir do início dos anos '60 (cfe. Harper). Uma rápida pesquisa com o Google N-Gram Viewer, para verificar a frequência de uma palavra em livros e revistas ao longo dos anos, demonstra claramente esta curva, comprovando, inclusive, um contínuo aumento de interesse pelo tema.


Esta compreensão, contudo, baseia-se no conceito de super-herói desenvolvido nos último setenta anos e, de modo especial, a partir justamente de meados dos anos '60, quando os super-heróis canônicos já estavam bastante desenvolvidos e antes do efetivo início das provocações ao conceito, que datam dos anos '80. Assim, termina-se por apagar uma personagem de grandíssimo sucesso à época, então mais popular que qualquer herói até agora mencionado, e à qual devemos parte da produtividade do citado traço da força sobre-humana (a noção da invencibilidade ou quase dos heróis já é um desenvolvimento; basta lembrar que, na primeira página do Action Comics #1, Superman estava longe de ser indestrutível, mesmo com elementos terrestres: "And nothing less than a burst shell could penetrate his skin!" [E nada além de uma bala pode penetrar sua pele!]).

Estou falando de Popeye the Sailor Man.


Popeye é hoje, no máximo, uma figura secundária no panteão dos heróis de quadrinhos, melhor compreendido como um herói infanto-juvenil de pouco interesse e mais lembrado pela irônica fonte de sua força, o espinafre (um mito que mostra o quanto é datado, pois há tempos se reconhece como a popular ideia vitoriana do espinafre como fonte de ferro era baseada num erro de impressão de um artigo acadêmico, que acrescentara um zero à quantidade do metal, efetivamente aumentando em dez vezes seus recursos -- como poderíamos fazer dizer a Aristóteles, a vida real nem sem é verossímil). Contudo, já em 1970, no ensaio The First (Arf, Arf) Superhero of them All [O primeiro (arf, arf) super-herói de todos], publicado no livro All in Color for a Dime [Tudo a cores por dez centavos], Bill Blackbeard argumentava que Popeye havia sido o "super-herói original", não apenas por sua força descomunal e por ser anterior a quase todos os demais (sua primeira tira é de 1929), mas especialmente porque o fenômeno Popeye ultrapassou em muito tudo quanto se deu com os heróis fantasiados em capas e máscaras que começaram a surgir depois dele (cfe. ComicBookBrains). Conforme a descrição de Blackbeard:
O Popeye de Segar é uma personagem composta de vulgaridade e compaixão, agressão bruta e gentileza protetiva, violento humor de beira-mar e sensibilidade genuína, teimosa cega e liderança imaginativa, inimizades brutais e amizades calorosas, capaz de derrubar um cavalo quando enfurecido mas também de cuidar de um bebê com uma febre capaz de estourar os termômetros. Ele não é um iludido paranoico, mas um homem de ação realista, complexo, frequentemente equivocado mas determinado que sofre constantemente com a agonia da decisão, que busca o que acredita ser o justo muito além dos limites da lei e da ordem em sua interpretação policia, que precisa abrir seu caminho para a compreensão por meio de idas e vindas da língua inglesa que são frequentemente demais para ele. (p. 94, tradução minha)
Descrição talvez mais apropriada para fanzine, mas não fácil de refutar. Contudo, é realmente
Swee'Pea (Gugu no Brasil)
suficiente para qualificar Popeye como o "primeiro super-herói"? Supérfluo dizer que a resposta depende da definição que se atribui ao termo e da vontade, consciente ou menos, de valorizar este ou aquele personagem, este ou aquele comic. Há um mito recorrente, aparentemente sustentado pelas fontes, de que quando a DC fez causa à Fawcett Publications alegando que o Captain Marvel era um plágio do Superman, um processo que durou mais de uma década, Fawcett teria apresentado não apenas Tarzan, mas também Popeye como um exemplo do gênero, alegando que a ideia de um herói com força sobre-humana já era de domínio público. Não creio que o reconhecimento dos antecedentes e motivadores do Superman de Siegel e Shuster diminua a qualificação de sua personagem como precursora: não são tanto, ou ao menos não são apenas, as características de cada um a qualificá-los como "primeiro", mas o desenvolvimento, a referência que constituem para o gênero. E não creio esteja em pauta que todas as narrativas atuais nas quais figura um super-herói são chamadas a se medir com o Superman, que é em relação a ele que dizemos se um dado herói é diferente ou não do arquétipo, e não com o Popeye. A evolução desta arte poderia ter sido diferente, e Popeye teve seu efeito, mas é em Superman que nasce o conceito de "super-herói"; substitui-lo por Popeye é tão justificado quanto a aceitável substituição por Hércules. Podemos resumir esta posição com as palavras de Gerard Jones (2004, p. 144,
Quaisquer que fossem os antecedentes para os poderes, o disfarce ou a origem do Superman que possamos encontrar em Edgar Rice Burroughs [o autor de Tarzan] ou Doc Savage, ou no Sombra, no Fantasma, no Zorro, em Philip Wylie ou no Popeye, nada jamais havia produzido uma leitura comparável. A vigorosa mistura de pastelão, caricatura e perigo já era familiar desde o Wash Tubbs de Roy Crane, mas Crane nunca deu o salto para uma fantasia tão pura. Hollywood havia criado momentos impressionantes a partir dos desastres naturais, e Douglas Fairbanks nos havia feito sentir o mesmo gozo de libertação física, mas não tinham nada que igualasse o prazer imediato destas cores planas e brilhantes e suas formas ferozmente simplificadas. Era a destilação das emoções mais potentes no mais puro lixo.
Talvez justamente no "prazer imediato destas cores planas e brilhantes" resida o diferencial da ação e do universo dos super-heróis, ao menos no formato mais estabelecido dos universos canônicos da DC e da Marvel. Se a força de Popeye não era inferior àquela do primeiro Superman (que nem mesmo podia voar, apenas "pular como um gafanhoto"), a tradição pictográfica nas quais se inserem obrigavam uma percepção e um desenvolvimento diferenciados. Popeye, assim como um herdeiro em parte paródico, Asterix, se filia ao estilo cartoon, à caricatura, no qual há menos pretensões de enganar o olho, menos sugestões realistas, e onde o jogo é reconhecido facultando a supressão da ordem real. As proporções podem ser exageradas, os efeitos podem ser libertados, e imperam a metáfora e a hipérbole. É assim que, já na primeira adaptação ao cinema, I Yam What I Yam (1933), Popeye pode jogar ao ar uma inteira floresta, as árvores já caindo no formato de uma casa.

Três fotogramas de I Yam What I Yam (1933)

O vocabulário e a sintaxe gráfica de Superman é diferente, mais próximo à posterior série dos Classics Illustrated da Gilberton Company, mais realista, num império da mimesis que, hoje com frequência, costuma exibir alguns tiques maneiristas. Não por acaso, já na primeira página do Action Comics #1 era necessário explicar a origem da força incomum do herói ("A scientific explanation of Clark Kent's amazing strength" [Uma explicação científica da força extraordinária de Clark Kent]); não por acaso, uma obsessão dos roteiristas dos cânones de super-heróis é justamente com a verossimilhança e a consistência, frequentemente solucionada por universos e reboots, das histórias. Se o traço de Popeye, assim como a própria personagem, se aplana e fica mais nítida com o passar dos anos, em paralelo a uma progressiva infantilização da fábula, em Superman o traço se torna cada vez mais realista mas sensível às vanguardas artísticas, enquanto os roteiros tentam agradar o mercado adulto, enquanto versões infantojuvenis adotam traços mais caricatos.

Superman and Wonder Woman, material de promoção DC, por Tony Daniel (2013)

Superman: The Animated Series (1996-2000), fotograma, fonte Wikipedia


Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais – 7ª edição. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.

GARCÍA, Santiago. A novela gráfica, tradução Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

HARPER, Douglas. Online Etymology Dictionary: "superhero", obtido em 15 de dezembro de 2014 (http://www.etymonline.com/index.php?term=superhero)

JONES, Gerard. Men of Tomorrow. Geeks, Gangsters and the Birth of the Comic Book. Nova York: Basic Book, 2004.

LUPOFF, Richard. THOMPSON, Don (org.). All in color for a dime. Minneapolis: Arlignton House, 1970.

NYBERG, Amy Kiste. Seal of Approval. The History of the Comics Code. Jackson: University Press of Mississipi, 1998.