Yuri Tynianov (1894-1943) |
A noção fundamental da evolução literária corresponde à substituição de sistemas, sustenta Tinianov, para em seguida afirmar que «a obra literária constitui um sistema» e a literatura outro. É possível isolar o assunto, o estilo, o ritmo e a sintaxe na prosa e o ritmo e a semântica na poesia, mas estes elementos estão em interacção e cada um desempenha diferentes papéis em distintos sistemas. A função construtiva de um elemento da obra literária como sistema corresponde à sua possibilidade de se correlacionar com os outros elementos do sistema: "O elemento entra simultaneamente em relação com a série dos elementos semelhantes que pertencem a outras obras-sistemas, isto é, a outras séries, e, por outro lado, com os outros elementos do mesmo sistema (função autônoma e função sínoma). Assim, o léxico de uma obra entra simultaneamente em correlação, por um lado, com o léxico literário e com o léxico tomado no seu conjunto; por outro lado, com os outros elementos desta obra. Estas duas componentes, ou antes estas duas funções resultantes, não são equivalentes".Uma consequência é impossibilidade de se estudar qualquer arte isoladamente, pois o material (os sistemas) de uma necessariamente migram e são reaproveitados. Cabe lembrar um exemplo concreto, dado por Tynianov em seu estudo sobre a paródia em Dostoiévski e Gogol: nos séculos XVII e XVIII a literatura russa se tornou um exercício extremamente abstrato e rebuscado, muito distante da "vida comum", baseado na composição de líricas de estruturas, sintaxes e vocabulários quase incompreensíveis. Quando o público se saturou destas poesias e se mostrou interessado em narrativas, não havia nenhum modelo literário próximo no qual se espelhar; uma das soluções foi se apropriar das técnicas narrativas encontradas nas cartas, que, muito longe de serem consideradas "arte literária", nunca haviam deixado de ser escritas e quase invariavelmente continham relatos. Em pouco tempo, o estilo das cartas foi copiado, imitado, destilado, e alguns romances, seguindo outros exemplos europeus, foram compostos usando quase unicamente cartas.
As impostações dos questionamentos do século XX na historiografia literária certamente poderão ser empregados para o estudo dos quadrinhos; é, no fundo, um dos motivadores deste blog.
Em termos de contato entre sistemas, há um caso particular, de quadrinhos parte de minha infância e que lia semanalmente nas páginas do italiano Corriere dei Piccoli. Pensando com mais de vinte anos de distância, talvez fosse justamente seu traço art-nouveau e seus versos que me causavam o "estranhamento" -- aquilo que Viktor Chklovski, outro dos principais nomes do formalismo russo, chamou em seu artigo "A arte como processo" de остранение, para definir o efeito criado pela obra de nos distanciar da ordem com a qual aprendemos e percebemos o mundo e a própria arte, que nos permite "estranhar". É aquela singularidade, que pode ser alcançada por vários meios, que faz da arte "boa".
Um momento... art-nouveau e poesia? Em quadrinhos? Sim, eis o estranhamento.
Il Signor Bonaventura |
Os dois grandes diferenciais do Signor Bonaventura são a sua forma sem balões e com "didascalias" em versos rimados (que permitem mesmo questionar o tratar-se de "quadrinhos") e a intersecção com outras artes, em especial com o teatro. Vejamos cada uma.
As histórias dos Signor Bonaventura seguiram, durante seus mais de setenta anos, uma forma extremamente regular: seis ou oito quadros com o estilo de traço já descrito, sem balões, cada quadro com uma descrição ("didascalias", como no teatro) constituída por dois dísticos de ottonari (verso da poesia italiana equivalente, grosso modo, ao raro eneassílabo da poesia portuguesa), com rima ABAB ou ABBA, geralmente iniciando por "Qui comincia la sciagura / del Signor Bonaventura" [Aqui começa a desventura / do Senhor Bonaventura]. Apesar das rimas simples, a linguagem era frequentemente áulica e alta, em contraste com o traço simplíssimo já lembrado. O roteiro igualmente seguia um esquema bastante determinado: de alguma "desventura" do protagonista logo resultava, sem que o pretendesse, a salvação de alguma personagem que, no último quadro, o recompensava com "un milione" (um milhão de liras, quantia astronômica nos primeiros anos da série quando o "suplemento ilustrado" custava dez centavos, transformada em "un miliado", ou um bilhão, após a inflação dos anos '40). À personagem principal de Bonaventura e seu companheiro de quatro patas se juntam algumas decididamente secundárias mas recorrentes, como a esposa (uma anônima princesa, introduzida já em 1917), o filho Pizzirì (basicamente um Bonaventura em miniatura), o comissário Sperassai ("muito espera"), o principal "supervilão", o esverdeado Barbariccia, e a mais recorrente entre as personagens eventualmente salvas por Bonaventura, o "bellissimo Cecè" (diminutivo de Cesare), perfeito representante do mundo do herói povoado por ricos (e generosos) reis, condes, barões, empresários. É um personagem inspirado na peça homônima de Luigi Pirandello de 1913, Cecè, onde com humor cínico se narra a história do bon viveur Cesare, o qual, frente ao cenário de corrupção e escândalos políticos da Roma do entre-guerras, se mantém na vida enganando as pessoas.
Signor Bonaventura, Corriere dei Piccoli, 19 de julho de 1959 |
1. Il signor Bonaventura Ottimista per natura il figliolo in piazza reca per giocare a moscacieca. 2. Contemplateli contenti l'uno e l'altro al gioco intenti: a tentoni il buon papà Pizzirì cercando va. 3. Ma l'eterno suo rivale Barbariccia, il criminale che gli fa la vita amara, un tranello gli prepara. 4. Inciampando nel cordino capitombola il meschino e va a sbattere diritto contro un uscio a capofitto. 5. S'apre l'uscio e proeittato come un missile lanciato con la zucca - guarda caso! centra in pieno antico vaso. 6. Cade il vaso con fragore e da quello il possessore sbucar vede sbalordito vecchio rotolo ingiallito. 7. Certo c'è in quel documento lo scomparso testamento fin ad or cercato invano dall'amato zio Gaetano. 8. E poichè da qui si vede ch'è lui solo, lui l'erede suo dovere è compensare chi lo fece ritrovare. | 1. O Senhor Bonaventura Otimista por natura o filhinho à praça leva para brincar de cabra-cega. 2. Contemplem-nos contentes o um e o outro ao jogo participantes: tateando o bom papai Pizzirì buscando vai. 3. Mas o eterno seu rival Barbariccia, o criminal que lhe torna a vida amarga, uma armadilha lhe prepara. 4. Tropeçando no fiozinho cambalhota o magrinho e vai a bater direto contra um umbral de cabeça. Abre-se a porta e projetado como um míssil atirado com a cabeça - quem diria! acerta em cheio antigo vaso. 6. Cai o vaso com fragor e de ele o possuidor surgir vê espantado velho pergaminho amarelado. 7. Claro que está no documento o sumido testamento até então buscado em vão pelo amado tio Gastão. 8. E já que dele se aprende qu'é ele somente, ele o herdeiro seu dever é compensar quem lhe fez encontrar. |
Os versos, apesar do ritmo e do metro quase infantil, tem os traços de toda a tradição poética ocidental: enjambement (a distribuição de uma mesma frase em mais versos), assonâncias, supressão de palavras, epênteses (adição de vogais incomuns ou desnecessárias para fechar o metro), palavras rebuscadas e raras. O uso de versos, em si, não era absolutamente inovador nos primeiros quadrinhos italianos: o primeiro Corriere dei Piccoli, de 1908, já utilizava este formato (em baixa resolução, infelizmente) e o mesmo ocorre na outra capa, de 1911, a história dos não melhor identificados "Moritz Hans e Franz" (similar à famosa The Katzenjammer Kids, mas mais adequada à boa moral dos filhos da burguesia de Milão -- é uma curiosidade válida de citar que o projeto estava a cargo de Paola Lombroso Carrara, filha do conhecido e "debatido" médico criminalista Cesare Lombroso) também contada em versos:
Corriere dei Piccoli, 1908 (primeira capa) |
Moritz Hans e Franz, Corriere dei Piccoli, 9 de julho de 1911 |
1.- "Starò fuori un mese, e porto via la chiave del mio orto, - dice Franz - ma è caldo assai e purtroppo i miei rosai, 2. che nessun più avrà innaffiati, troverò certo seccati..." Il rimedio al triste caso già sa Moritz che ha buon naso. 3. Una secchia e una lunga asta, ecco ciò che al caso basta: farà il resto il buon mulino - pensa il furbo olandesino. 4. Secchia ed asta ecco legata alla pala smisurata, e versata ecco parecchia acqua fresca entro la secchia. 5. Già si mette pian col vento la gran pala in movimento. Sembra dire: "- Franz, vedrai, ci son io pei tuoi rosai". 6. Dice or Moritz, mentre gronda sui rosai l'acqua e li inonda: "- Caro Franz non seccheranno s'anche state fuori un anno". | 2. -"Estarei longe mais de mês, e levo embora a chave da minha orta, - diz Franz - mas está quente assaz e infelizmente meu roseiral, 2. que ninguém mais terá regado, encontrarei certamente secado..." O remédio ao triste caso já sabe Moritz que tem bom faro. 3. Um balde e uma longa haste, e tanto que ao caso baste: fará o resto o bom moinho - pensa o esperto holandesinho. 4. Balde e haste eis ligadas à pá exagerada, e versada eis bastante água fresca dentro ao balde. 5. Já se começa aos pouco com o vento a grande pá seu movimento. Parece dizer: "- Franz, verás, tens a mim para os roseirais". 6. Diz agora Moritz, enquanto goteja sobre as rosas a água e as inunda: "- Caro Franz não secarão nem que fiques longe um ano". |
O estranhamento dos versos nos quadrinhos do Signor Bonaventura é devido apenas à pouca familiaridade que temos com eles; na verdade, quando foi lançado, em 1917, a nova tira se enquadrava perfeitamente, sem inovações, no estilo da revista.
Combinado ao sucesso publicitário (foi usado desde a promoção para o financiamento da reconstrução do país após a guerra até a introdução do euro na virada do milênio), essas características já seriam suficientes para fazer o senhor Bonaventura merecedor de uma nota (ou ao menos de um post). Mas, como já dito, há outro detalhe praticamente único na história desta personagem de quadrinhos: o desenvolvimento interligado ao teatro italiano, especialmente à tradição da Commedia dell'Arte. Sto era um pluriartista e um amado ator de teatro, cinema e televisão, e até o final dos anos cinquenta uma das personagens mais encenadas pelo ator era justamente o Signor Bonaventura.
Barbariccia e Signor Bonaventura (fonte) |
A descrição da personagem, as fotografias das encenações, a estrutura das tramas e uso da poesia, combinadas à tradição italiana da Commedia dell'Arte ainda bastante viva na primeira metade do século passado (para dar um único exemplo, baste pensar que Totò, o mais querido personagem do cinema italiano, é uma evolução sui generis das máscaras napoletanas da Commedia) deveriam fazer imediatamente saltar aos olhos a gênese do Signor Bonaventura: apesar dos recursos gráficos e narrativos dos quadrinhos que na época eram importados dos Estados Unidos, se trata de uma evolução da tradição da Commedia dell'Arte.
A commedia dell'arte, cabe lembrar, é, mais um que gênero, uma modalidade de produção dos espetáculos teatrais popularizada na Itália, e sucessivamente na França, entre os séculos XVI e XVIII. As peças não eram baseadas em roteiros escritos, mas em canovacci, uma espécie de descrição genérica e superficial das peças, que não entrava nas minúcias da representação. Os canovacci eram, na prática, as deixas que permitiam a improvisação por parte dos atores, que durante as peças entremeavam lazzi (ações cômicas bem ensaiadas e distintivas das personagens) e diálogos, tudo com uma cenografia mínima. Primeira efetiva profissionalização da atividade teatral, a Commedia dell'Arte tinha peças estruturadas na caracterização bastante definida de muitas personagens ("máscaras"), algumas das quais, apesar das esperadas alterações devidas ao tempo, ainda são conhecidas: entre dezenas de outroas, Arlecchino, Colombina, Pierrot, Pulcinella, Pantaleão.
Representação de uma trupe da CA (final do séc. XVI), anônimo, Musée Carnavalet |
Sto tinha plena consciência da tradição que representava, e sentia enorme prazer em certas descrições do Signor Bonaventura como "ultima máscara da Commedia", apesar de deixar vir à tona, na aparente infantilidade da obra, uma enorme bagagem de outras referências, de Metastasio aos futuristas na literatura, do liberty (o "art nouveau" na interpretação italiana) ao cubismo no traço.
É hora de voltar à questão da história dos quadrinhos. A mais evidente distinção entre o Signor Bonaventura e os quadrinhos em geral é certamente a forma da "didascalia", aprendida dos "proto-quadrinhos" americanos da segunda metade do século XIX (que por sua vez reinstauravam uma prática da qual se encontram testemunhos já no Renascimento e que havia sido introduzida por aquele hoje considerado o precursor dos quadrinhos, o suíço Rodolphe Töpffer), como Ally Sloper de Charles Ross. Se havia alguma diferença na forma -- especialmente considerando o ambiente italiano, no qual a palavra para quadrinhos é "fumetti" ("balõezinhoes") -- nunca ouve, contudo, diferença no consumo, e tanto público quanto suporte físico inscrevem claramente a obra de Sto no âmbito dos quadrinhos. Além disso, é interessante como as novas experiências, devidas à popularização da graphic novel (que requer novas soluções) e a pluralidade dos quadrinhos indie ou alternativos (ao menos desde Harvey Kurtzman e Robert Crumb), acabam por vezes levando, hoje, a soluções mais próximas àquelas de Bonaventura, apesar do estranhamento dos versos ter pouquíssimos, quando algum, paralelos.
Alexander "Ally" Sloper, por Charles H. Ross (1867) |
É um caso peculiar da influência entre as séries artísticas, de apropriação e adaptação. Contudo, apesar do sucesso de público e de uma certa influência na cultura italiana, Signor Bonaventura parece literalmente uma obra única, incapaz de influência ativa na continuidade do gênero: apesar de alguns traços distintivos, às vezes exagerados pelo sentimento nacional que permanece bastante forte, os quadrinhos italianos seguiram linhas de desenvolvimento paralelas àquelas americanas, podendo ser bem representado pela Disney italiana (cabe lembrar que uma parte considerável dos quadrinhos da Disney, inclusive daquele publicados no Brasil, é produzida na Europa, especialmente na Itália e na Dinamarca) e pelo Tex de Gian Luigi Bonelli. A vantagem da postura de evolução artística sugerida por Tynianov é que talvez um dia as lições do Signor Bonaventura possam ser recuperadas, mesmo que em um nicho, ao se buscar algumas soluções que uma leitura auto-referencial dos quadrinhos não seja mais capaz de satisfazer. É, de certo modo, a leitura que podemos fazer também das graphic novels dos anos '80: sua inovação estava justamente em buscar, muito mais que novos desenhistas que se mostravam cada vez mais hábeis, novos roteiristas capazes de quebrar a autoreferencialidade dos quadrinhos de super-heróis colocando o dedo na ferida dos super-poderes com interpretações bastante inovadoras e que buscava soluções em outras artes: é o caso de Sandman e Watchmen.
Referência
BRANCO, Isabel R. A. A recepção das literaturas hispano - americanas na literatura portuguesa contemporânea: edição, tradução e criação literária. (tese de doutoramento). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2014. (fonte)